C�digo: aberto para os neg�cios

Por Ariane Stolfi

uma reflex�o sobre o livro Code � and other Laws of cyberspace, de Lawrence Lessig
dispon�vel em
http://codebook.jot.com/WikiHome

Como aconteceu com todos os grandes desenvolvimentos humanos da era do capital, a internet tamb�m foi completamente apropriada pelo capitalismo. Inicialmente apontada como o lugar das novas utopias de liberdade, a internet est� se tornando cada vez mais um meio-ambiente controlado, vigiado e mercantilizado.

O Livro Code, and other laws of cyberspace, de Lawrence Lessig, lan�ado em 2000 foi escrito em uma �poca onde esse processo estava apenas come�ando e trata das quest�es que dizem respeito a essa regulamenta��o, principalmente sob aspectos legais. A vers�o 2 foi revisada em conjunto com colaboradores a partir de um sistema wiki. Cabe notar que o professor de direito � o fundador da Creative Commons, organiza��o que lan�ou uma s�rie de licen�as de copyright que oferecem a possibilidade de compartilhamento livre.

Auto-declarado constitucionalista, o professor de direito Lessig, analisa quest�es que relacionam novos paradigmas trazidos com o advento da internet com quest�es hist�ricas fundamentais da constitui��o americana, que limita o poder do governo federal e protege direitos dos cidad�os, como a liberdade de express�o e a privacidade e a propriedade privada (intelectual ou material).

Originalmente desenvolvida para auxiliar a pesquisa cient�fica, conectando laborat�rios, a arquitetura da internet foi projetada para ser aberta, p�blica, como � importante que sejam as ferramentas de pesquisa, assim, a linguagem-base que serviu de suporte para a constru��o da world wide web, o html, tamb�m foi concebido a partir dessa perspectiva. No entanto, como acontece com todos os desenvolvimentos que acompanham a hist�ria da cultura ocidental desde o princ�pio do capitalismo, a internet tamb�m foi apropriada pelos grandes neg�cios, e foi no com�rcio que ela acabou encontrando sua 'raz�o de ser'.

O com�rcio, por sua vez, exige uma s�rie de medidas de seguran�a, de certifica��o de identidade e de controle que n�o estavam contemplados neste projeto original, e novas tecnologias de controle tiveram que ser desenvolvidas a fim de garantir a seguran�a necess�ria para as transa��es comerciais. Na �poca em que o primeiro livro tinha sido escrito, o comercio virtual estava apenas engatinhando, hoje, essas tecnologias j� s�o triviais.

A internet, que naquele momento p�s-queda do muro de Berlin, tinha se tornado o novo alvo da utopia libert�ria j� come�a a ser percebida no seu car�ter contradit�rio. E de uma certa maneira, Lessig j� estava enxergando esse poss�vel desenvolvimento, como fica claro na seguinte passagem:

"As our framers learned, and as the Russians saw, we have every reason to believe that cyberspace, left to itself, will not fulfill the promise of freedom. Left to itself, cyberspace will become a perfect tool of control."

Ent�o, se um determinado c�digo ou sistema for propriet�rio, ou seja, for propriedade privada de algu�m, ele estar� ent�o protegido sob o ponto de vista da legisla��o americana, como est�o protegidas as propriedades privadas e a privacidade, essa prote��o, argumenta ele, leva a uma possibilidade maior de controle, o que para um liberal, como ele mesmo se define, pode ser altamente nocivo.

Nesses termos, o autor defende o movimento do software livre como uma 'revolu��o', e teme que seja muito f�cil para o governo destruir essa 'revolu��o'. Diferente da propriedade 'material', afirma Lessig, um software (e outros bens culturais na era da reprodutibilidade t�cnica) pode ser compartilhado sem que ningu�m sofra preju�zos no uso. A cultura � como o fogo, pode ser propagada. Ele certamente est� correto, mas � fato que boa parte dos esfor�os de diversos desenvolvedores por todo o mundo cada vez mais s�o apropriados pelas coorpora��es, que encontraram no software livre, pelo c�digo aberto, uma bela forma de economizar em licen�as e uma �tima maneira de desenvolver solu��es personalizadas a partir de uma base muito extensa de trabalho acumulado, muitas vezes n�o-remunerado.

Essas quest�es come�am a preocupar a comunidade do software livre, como fica exposto por exemplo no release do lan�amento da licen�a GPL 3:

"The free software movement's goal is freedom for computer users. Some, especially corporations, advocate a different viewpoint, known as "open source," which cites only practical goals such as making software powerful and reliable, focuses on development models, and avoids discussion of ethics and freedom. These two viewpoints are different at the deepest level."

A Google, por exemplo � uma corpora��o que soube muito bem se apropriar disso. Boa parte da base de seus sistemas � feita a partir de software livre, mas como seus aplicativos s�o acessados via web, n�o s�o distribu�dos, o que permite que eles n�o publiquem os c�digos, uma vez que a licen�a dos softwares utilizados s� exige a aplica��o da mesma licen�a nos aplicativos distribu�dos. Contra esse tipo de utiliza��o abusiva, a nova licensa da free-software foundation, a GPL-3 (general public license 3) obriga aqueles que utilizarem softwares GPL a publicar o c�digo de seus aplicativos web, entre outras iniciativas que v�o no sentido de for�ar o compartilhamento dos c�digos.

Mas uma outra quest�o que foi apontada na revis�o desse livro, � de que o simples fato do c�digo ser aberto n�o significa necessariamente que haja uma maior vigil�ncia por parte dos usu�rios. Compreender um c�digo a ponto de remover as funcionalidades que se deseja n�o � uma tarefa simples como desligar um bot�o. Exige um conhecimento t�cnico bastante apurado, restrito a uma comunidade relativamente pequena.

Uma quest�o que preocupa Lessig � o fato de que c�digos propriet�rios podem ser facilmente embutidos com ferramentas de controle, por press�o do governo por exemplo. O monitoramento atrav�s da internet � muito preciso e naquele momento era uma quest�o ainda nova. Ap�s o 11 de setembro, as coisas mudaram um pouco, e a pr�pria legisla��o americana foi alterada afim de permitir o monitoramento de e-mails � procura de supostos terroristas.

O monitoramento na internet n�o � como os grampos ou as c�meras de seguran�a. As informa��es que circulam ficam registradas, organizadas, e � poss�vel a reuni�o de um n�mero muito grande de informa��o � respeito de um determinado endere�o, mas esse endere�o IP n�o � uma pessoa. Ele pode ser compartilhado entre v�rias pessoas, e uma mesma pessoa pode usar v�rios endere�os diferentes. Ent�o, no final aparece mais uma quest�o contradit�ria: um ambiente altamente controlado e vigiado, mas aonde a identifica��o nunca pode ser totalmente garantida.

Naquele momento, a preocupa��o de Lessig era com o fato de que nos c�digos propriet�rios, o governo poderia induzir ou obrigar que as companhias inserissem ferramentas de controle escondidas. O c�digo aberto, numa dire��o oposta, permitiria que os usu�rios reconhecessem esses mecanismos e os desativassem, mas isso na verdade recai naquele mesma quest�o de que somente aqueles que dominam as ferramentas muito profundamente conseguem de fato ter um controle sobre o c�digo. Essa certa prote��o contra abusos depende de uma comunidade de programadores alerta e atuante.

S�o v�rias as quest�es legais que surgem com a internet. O professor de direito trata no livro de algumas delas, relacionadas muitas vezes com supostos abusos que podem ocorrer em fun��o de uma desterritorializa��o como o caso do site de jogos, que pode, instalado em algum pa�s com legisla��o relapsa, acaba sendo utilizado por pessoas em estados aonde o jogo � proibido. Isso pode ser um problema para um liberal que confia e defende a 'democracia' burguesa, mas pode ser muito interessante para v�rios grupos de intuitos dos mais distintos. � sabido, por exemplo, que a Su�cia se transformou em uma esp�cie de para�so da pirataria, por sua legisla��o relaxada de direito autoral.

A internet tamb�m permite que qualquer um (com um cart�o de cr�dito internacional, � claro) possa se beneficiar da carta de direitos americana, que na sua defesa da liberdade de express�o, coisas que s�o proibidas no Brasil, como por exemplo, apologia ao crime, defesa do uso de drogas, blasf�mia entre outras coisas.

Outro ponto importante tratado no livro � a quest�o do espa�o virtual, o espa�o do avatar, que pode ser constru�do com possibilidades muito diferentes do espa�o da vida real. Uma realidade constru�da pela maneira que as pessoas interagem umas com as outras, aonde a realidade pode ser constru�da independente dos atributos f�sicos e independente das rela��es sociais historicamente constitu�das. O espa�o virtual, o espa�o do avatar � um territ�rio aonde muitos indiv�duos conseguem dar vaz�o a sentimentos e tomar atitudes que n�o seria capaz na first life, uma vez que credibilidade na rede se constr�i de uma maneira muito diferente. E, ironicamente, a second-life acaba de certa forma reproduzindo as contradi��es mais agudas da first-life, com uma mercantiliza��o ainda mais escancarada.

Na second-life tudo � mercadoria.


Um novo modelo de neg�cios

Muitos dos protocolos que deram base para o nascimento da internet eram abertos, pelo menos inicialmente. O HTML1 , que � a linguagem-base da internet �, a priori, acess�vel para os visitantes do site, com apenas um clique de mouse. Essa abertura � uma quest�o de princ�pio, n�o era algo realmente necess�rio para a constitui��o da rede, mas sim uma op��o dos pesquisadores que a conceberam. 1. HTML � a sigla para Hipertext Markup Language � uma liguagem que permite marcar o conte�do de um arquivo com etiquetas que determinam um car�ter sem�ntico para a informa��o contida, o que permite que os navegadores interpretem esses arquivos da maneira como os vemos na rede.

Essa abertura, no entanto, foi crucial para sua ampla implementa��o, ao permitir que v�rios pesquisadores se envolvessem nos processos de implementa��o e desenvolvimento dessas tecnologias.

A world-wide-web foi constru�da (para a ind�stria cultural) baseada em um modelo de neg�cios que consistia basicamente em: empresas contratavam programadores e produtores de conte�do, compravam software propriet�rio e ofereciam conte�do aos visitantes, �s vezes pago, �s vezes sustentado por an�ncios, e os visitantes acompanhavam de uma maneira mais ou menos passiva. Fora da ind�stria cultural, v�rios artistas, pesquisadores e amadores constru�am uma rede de sites pequenos, dentro das limita��es pr�ticas a que estavam submetidos, criando uma rede difusa e ampla de informa��o.

Tecnologias que foram se desenvolvendo ao longo do tempo, muitas delas fruto do trabalho das comunidades do software livre permitiram o desenvolvimento de sistemas de atualiza��o din�mica de conte�do, num processo que foi mudando a forma de organiza��o e produ��o de conte�do na internet. � o que agora chamam de web 2.0, que muda radicalmente o 'modelo de neg�cios' para a rede.

Agora, as empresas contratam programadores para customizar e adaptar sistemas constru�dos embasados em software livre, economizando em licen�as, e o que � mais importante, contam com os pr�prios visitantes para produzirem (ou reproduzirem) gratuitamente o imenso conte�do que fica armazenado em seus gigantescos bancos de dados.

� o desenvolvimento de uma nova ideologia 'da colabora��o', 'das redes sociais', que vem de uma certa maneira ocupar lugares aonde antes estavam colocadas rela��es de trabalho. Agora, ao inv�s de se apropriar somente do trabalho n�o pago aos seus funcion�rios (a tradicional mais valia), agora as companhias conseguem capturar o valor gerado tamb�m pelos seus milh�es de consumidores, como vimos por exemplo no caso do You Tube, que foi vendido por absurdos 1,6 bilh�es de d�lares, sem que nenhuma das pessoas que postaram v�deos tenha recebido nenhum centavo disso.

Agora, estamos em uma �poca aonde a internet � dominada por grandes conglomerados que direcionam e organizam o fluxo de informa��es, informa��es centralizadas em grandes bancos de dados, alimentados diretamente pelos usu�rios com uma quantidade absurda de informa��o in�til. As grandes empresas comemoram a volta dos investimentos e o aumento do faturamento com publicidade.

� claro que esse novo modo de organiza��o traz tamb�m conseq��ncias importantes para o pr�prio desenvolvimento da cultura de um modo mais geral, mudando radicalmente a forma de distribui��o, diminuindo o custo de difus�o. Com essas novas ferramentas, aquele que quer publicar algum conte�do na internet n�o precisa mais adquirir um conhecimento t�cnico espec�fico, como o dom�nio de protocolos de transfer�ncia e linguagens de marca��o.

Talvez ainda seja cedo para avaliarmos as conseq��ncias dessa mudan�a no processo hist�rico, mas certamente j� conseguimos notar algumas contradi��es decorrentes desse fato. Uma cultura da valoriza��o do indiv�duo comum, mesmo que pasteurizado. Uma cultura aonde o principal modo de sobreviv�ncia � a auto-promo��o. Uma �poca aonde a ind�stria tem o total conhecimento dos desejos dos seus usu�rios, atrav�s da cole��o de dados e prefer�ncias de seus consumidores. Uma cultura da informa��o f�cil, da divers�o barata, aonde a informa��o antes de �til deve ser agrad�vel.

Vivemos um momento aonde a tecnologia nos permite se conectar e estabelecer contatos entre todas as partes do mundo, mas ironicamente, estamos cada vez mais distantes dos nossos camaradas mais pr�ximos. Uma cultura aonde escrever para os rob�s pode ser mais importante do que escrever para as pessoas. Construindo espa�os virtuais para, de uma certa maneira, esquecer que o estado de ru�na que se encontra a natureza e a condi��o humana de um modo mais geral.

Bibliografia
Code and Other Laws of Cyberspace V2 - Lawrence Lessig
http://codebook.jot.com/WikiHome

Infoenclausura 2.0 - Por Dmytri Kleiner & Brian Wyrick - Mute Magazine, traduzido em http://www.finetanks.com/referencia/artigos/ifoenclosure.php

Mais-valia 2.0 - Por Rafael Evangelista
http://www.dicas-l.com.br/zonadecombate/zonadecombate_20070714.php

FSF releases the GNU General Public License, version 3
http://www.fsf.org/news/gplv3_launched

Robert Kurz
A M�QUINA UNIVERSAL DE HARRY POTTER
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz208.htm

Coletivo sarav�
Estudos sobre apropria��o capitalista
http://wiki.sarava.org/Estudos/ApropriacaoCapitalistaRedesSociais

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